Por que enterramos nossos mortos?

O ato do sepultamento não é uma questão natural. O homem é o único animal que enterra seus amigos e parentes. Certamente, a origem não está em questões higiênicas, já que os cadáveres enterrados são objeto de muito interesse dos decompositores, como baratas, ratos e tatus. Em pequeno número, eles apenas cumprem um papel natural: reciclar o material orgânico, para que ele sirva a outras funções.

Quando este número cresce, no entanto, os animais tornam-se pragas e podem colocar em risco a saúde e os estoques de grãos.

Não foi o homem (o Homo sapiens) que inventou o sepultamento. O Homem de Neanderthal, que colonizou a Europa, já fazia o mesmo quando o seu primo africano chegou a suas aldeias (e provavelmente destruiu a espécie). Trata-se de um ato de respeito com aqueles que partilharam a existência conosco e, graças a diversas escavações paleontológicas, sabemos hoje que o enterro é uma reafirmação da crença na vida após a morte.

Em diversos sítios arqueológicos (Egito, Oriente Médio, Anatólia, México, Peru, etc.), foram encontrados alimentos e utensílios junto às urnas funerárias, indicando que o “morto” poderia precisa destes objetos em sua exploração do outro mundo. Os egípcios, entre outros povos, cultivaram esta tradição com esmero.

Nas pirâmides (não apenas nas três imensas – Quéops, Quéfren e Miquerinos, mas em centenas de outras) e mastabas (uma espécie de capela funerária), há uma série de objetos enterrados com o cadáver, como armas, tigelas, roupas e até cosméticos. Fica claro que, para eles, a vida havia sofrido apenas uma suspensão, mas continuaria em algum outro lugar. Como as crenças eram baseadas na riqueza na Terra, parentes e amigos homenageavam seu morto com artigos para ele prosseguir na viagem pela eternidade.

O início do enterro dos nossos mortos

É provável que tenhamos começado a enterrar nossos mortos para não deixá-los expostos à ação de animais carniceiros, como urubus e chacais. Desta prática teria sido desenvolvido o tabu contra a profanação dos mortos. Até hoje, o roubo de artigos depositados junto aos corpos em jazigos escandaliza a opinião pública e é crime previsto no código penal da maioria dos países.

Outro aspecto é o mau cheiro. Poucas horas após a morte, o corpo começa a se decompor, emitindo odores provocados pela emissão de gases na ação das bactérias. Entre os hebreus antigos, a família permanecia junto ao cadáver até “tomar nojo”. Até hoje, a licença remunerada concedida após a morte de um parente ainda leva este nome: “licença nojo”.

Mas a dor da perda e a vontade de ver o ente querido levantar-se novamente acompanhava a mera necessidade de afastar o foco de fedor.

O sepultamento, assim, gradativamente se tornou uma forma de despedida. Mesmo com o corpo preparado com especiarias e flores (sem cheiro, ou ao menos sem um cheiro tão forte), familiares e amigos passaram a se reunir para lembrar histórias do cadáver e lamentar a sua partida. Jesus, que morreu no Calvário, local de execução de ladrões e rebeldes, foi um dos poucos martirizados no local a merecer uma sepultura, de onde teria ressuscitado no terceiro dia (ele morreu numa sexta-feira e os códigos religiosos judaicos impediam qualquer atividade depois do cair da noite; por isto, as mulheres que o acompanhavam só puderam ir à sepultura para preparar o cadáver na manhã do domingo, depois de encerrado o sabbath).

Até hoje, em alguns locais, mulheres são especialmente contratadas para chorar o morto. São as carpideiras. Quanto mais importante o falecido, maior é a choradeira na hora do adeus.

As tradições

Costumes locais simples, visando apenas à despedida, tornaram-se grandes tradições entre muitos povos. Com o desenvolvimento das religiões organizadas, criaram-se muitas orações para o momento da passagem e muitas delas se tornaram dogmas, um ato que deve seguir a determinadas regras. No Ocidente, o sepultamento sempre foi uma cerimônia triste, que progressivamente ganhou contornos cada vez mais perturbadores.

Alguns historiadores afirmam que o velório surgiu na Idade Média, para evitar o sepultamento de pessoas em estado de catalepsia (doença em que os músculos se tornam rígidos e sem contrações). A produção de copos de estanho era comum na época – e a combinação de excesso de vinho e óxido de estanho parecia facilitar a ocorrência da catalepsia, com os desagradáveis enterros de pessoas vivas.

Surgiu a ideia, na Inglaterra, de uma vigília, para evitar estes fatos. O corpo era posto sobre uma mesa e os familiares se revezavam no cuidado. Consta que diversas pessoas foram salvas em função desta providência, logo absorvida pela Igreja, que viu na situação um bom momento para reverenciar a ressurreição e advertir os pecadores sobre as torturas do inferno.

Os enterros eram geralmente realizados no entorno das igrejas (na América, os corpos de escravos, quando não eram simplesmente descartados, eram enterrados em valas comuns). A prática, no entanto, superlotou estes “campos santos”. A partir do século XVII, inclusive por força de lei, foram criados os cemitérios – espaços em área aberta nos arredores das cidades e aldeias. Ritos religiosos e militares acompanharam desde sempre estas cerimônias.

Uma curiosidade: em São Paulo, um dos primeiros cemitérios foi o da Consolação. Celebrava-se a missa de corpo presente na Igreja de Nossa Senhora da Consolação e, em seguida, o féretro seguia pela estrada que ligava os campos de Piratininga à aldeia de Pinheiros. Quem diria: há 200 anos, a movimentada Rua da Consolação, comércio frenético, baladas, trânsito infernal, ficava “fora da cidade”.