Os textos de Nag Hammadi

Os textos de Nag Hammadi são uma coleção de escritos do Cristianismo primitivo, período entre o estabelecimento das primeiras comunidades cristãs e a divulgação das conclusões do Concílio de Niceia, em 325, que definiu o Catolicismo como real representante dos ensinos de Jesus, em detrimento de outras correntes religiosas.

O material foi descoberto por acaso, em 1945, no Egito, próximo à cidade de Nag Hammadi. Mohammed Ali Samman, um camponês da região, encontrou uma jarra selada, que continha 13 manuscritos de papiro embrulhados em couro.

 Apócrifo de João, um dos textos de Nag Hammadi.
Apócrifo de João, um dos textos de Nag Hammadi.

No total, são 52 tratados, gnósticos em sua maioria. A descoberta inclui três trabalhos do “Corpus Hermeticum”: “Discurso sobre Ogdôade e Enéade” e fragmentos do “Discurso Perfeito”, de Esculápio: “Prece de Ação de Graças” e Esculápio 21-29.

O “Corpus Hermeticum” é um conjunto de livros escritos entre os anos 100 e 300 da Era Cristã, com influências de diversas partes do Império Romano. A autoria é atribuída a Hermes Trimegisto (“três vezes grande”) e narra experiências em contato com o Nous, a divindade absoluta.

Entre os textos de Nag Hammadi, inclui-se uma tradução para o copta, com alterações, de “A República”, de Platão. Todos os textos encontrados, aliás, estão redigidos em copta, mas foram traduzidos do grego. O mais conhecido é “O Evangelho segundo Tomé”, que já foi publicado em diversos países.

Os camponeses tentaram sem sucesso vender os textos de Nag Hammadi. Um único manuscrito foi comprado por um antiquário belga, que apresentou o material em Paris (França) e Nova York (EUA), mas não conseguiu boas propostas. O manuscrito finalmente foi adquirido pelo Instituto Carl Gustav Jung (Zurique, Suíça), em 1951. A ideia era presentear o discípulo de Sigmund Freud em seu aniversário, em 26 de julho.

Dez anos depois, com a morte do psicólogo, houve uma disputa, no instituto, pela posse do manuscrito. Alguns herdeiros também entraram na demanda, já que o valor do documento era bem conhecido. O manuscrito só foi devolvido ao Museu Copta do Cairo em 1975, depois que o material foi traduzido para os idiomas francês e inglês.

A maior parte do material já havia sido analisada e traduzida no Egito. Os textos de Nag Hammadi demonstraram ser uma importante fonte para entendimento das formas de vida, associação e cooperação dos grupos cristãos que se espalharam pelo Mediterrâneo.

Ao lado dos Manuscritos do Mar Morto, que começaram a ser escavados no fim dos anos 1940 e durante toda a década seguinte, os textos de Nag Hammadi ajudam a contar um capítulo muito importante da história do Ocidente.

Os motivos do ocultamento

Não é possível identificar, com absoluta certeza, os motivos por que estes textos foram escondidos a uma distância considerável para a época: Nag Hammadi fica a 220 km de Assuã. A região continua até hoje agrícola e extrativista, com produção de açúcar e minério de alumínio.

Supõe-se que eles pertenceram ao Monastério de São Pacômio (a 800 km de Alexandria, no litoral egípcio) e foram enterrados depois da condenação do uso de evangelhos não canônicos, em 367, pelo bispo Atanásio de Alexandria, na sua carta festiva – o anúncio da datada Páscoa, de acordo com observações astronômicas. A capital do Egito foi escolhida em função de abrigar um grande telescópio.

Na carta, Atanásio estabeleceu em 22 os livros do Antigo Testamento. O bispo acrescentou o Livro de Baruc e a Carta de Jeremias, mas excluiu o Livro de Ester. No Novo Testamento, a relação é idêntica à adotada atualmente pela Igreja Católica.

No ano 180, Irineu, bispo de Lyon (França), já havia advertido os cristãos para que não mantivessem mais evangelhos “do que os que realmente existem”. A unificação das doutrinas, entretanto, ainda estava muito longe de ser obtida. Desta forma, as comunidades (bastante isoladas) continuaram a ler os textos que melhor lhes pareciam.

Atanásio relacionou alguns livros que deveriam ser lidos pelos fiéis, chamando-os de “canonizados, e não canônicos”. Entre eles, Ester, Judite e Tobias. Também apontou os que deveriam ser rejeitados, chamando-os de apócrifos (literalmente, secretos, que não devem ser vistos). Como os textos gnósticos constavam da relação, foi necessário escondê-los.

O gnosticismo

Existem muitas referências a respeito de um gnosticismo anterior à Era Cristã, mas não há qualquer documentação sobre as crenças e tradições que poderiam ter norteado este grupo nesta época. Seja como for, não se trata de um grupo uniforme. Diversas comunidades dos primeiros séculos depois de Cristo se declararam gnósticas, até que a doutrina foi considerada herética, no Concílio de Niceia.

Em comum, os gnósticos acreditavam que o mundo é produto de um erro, mas benévolo, permitindo a alegria na medida em que os limites materiais permitam. Eles também acreditavam em um Deus criador, potência central, da qual emanou um segundo deus (o demiurgo), que efetivamente criou o mundo a partir da organização feita pelo ente supremo.

Para a maioria, Jesus é a encarnação de Deus, que veio para a Terra trazer a gnosis (conhecimento) para a humanidade. Alguns grupos, no entanto, afirmavam que Jesus era um falso messias, que perverteu os ensinados que lhe foram confiados por João Batista.

A salvação, para os gnósticos, não era a retirada do pecado, mas da ignorância. Desta forma, o conhecimento, para eles, não era um meio de salvação, mas o único meio. O objetivo do homem era deixar a ignorância, encontrar-se, identificar seu lugar no Pleroma (a plenitude divina) e as formas de retornar para a totalidade. O pecado ainda mantinha a concepção original: “errar o alvo”. No início da Era Cristã – e hoje também –, um dos motivos para o erro é a ignorância.

Diferenças nos evangelhos

Os evangelhos contidos entre os textos de Nag Hammadi apresentam algumas divergências sérias em relação aos quatro livros canônicos que integram o Novo Testamento. O Evangelho segundo Felipe, por exemplo, afirma que a criação do mundo foi um erro. De acordo com o texto, “aquele que o criou pretendia criá-lo imortal e perfeito, mas ficou muito aquém do seu desejo”.

A ideia de que um intermediário entre Deus e a criação é uma tentativa para explicar os males do mundo. Para os gnósticos, a Pleroma não poderia emanar um mundo repleto de fome, guerras, disparidades e doenças. Mesmo assim, os seres humanos – ou, ao menos, parte deles – poderiam transcender esta condição e acessar a sabedoria.

O Evangelho segundo Tomé descreve Jesus como um ser vindo das mais altas esferas celestiais não com o objetivo de imolar-se pela salvação da humanidade, libertando-a do pecado original. Ele teria vindo como mensageiro de paz e autorredenção, na condição de descendente do reino espiritual.

A versão que se tornou original – a do sacrifício voluntário em benefício dos homens – é bem diferente. Na visão cristã atual (de diversas confissões religiosas), a humanidade estava totalmente divorciada de Deus, e apenas o próprio Deus poderia atraí-la novamente. Para os gnósticos, é a humanidade que precisa esforçar-se para elevar-se a Deus, livrando-se da ignorância. A tentativa de reunião é a mesma, mas o sentido das doutrinas é inverso.