O perdão através da autoflagelação

Faz parte da cultura judaico-cristã: nascemos com o pecado original e, por isto, estamos sujeitos à tentação. A religião judaica, aliás, não admite um salvador que carregue todos os pecados: o Messias virá em uma época de paz, e esta época ainda não chegou. No entanto, herdamos conceitos hebraicos e judaicos – e muitos outros criados na Idade Média – que nos fazem buscar o perdão através da confissão da culpa e do erro. Em casos extremos, apelamos para a autoflagelação.

São muitas as diferenças entre Cristianismo e Judaísmo. A autoflagelação é uma característica específica de algumas vertentes do Catolicismo (mas não única: Martinho Lutero, padre agostiniano que deu início à Reforma Protestante, era adepto da prática). O castigo mais comum é o uso do chicote. É um ato de purificação cometido depois de vários pecados, mesmo que apenas em pensamento, mas divide a opinião de leigos e clérigos.

Na Idade Média, monges e muitos fiéis entregavam-se à autoflagelação com regularidade. Além do chicote, que arrancava sangue das costas dos praticantes, era comum pastar como gado, ficar preso em gaiolas minúsculas, manter-se apoiado em apenas um pé até não aguentar mais.

Simeão, o Estilista, considerado santo pelas igrejas Católica e Ortodoxa, é um exemplo. Trata-se de um monge eremita que nasceu na Síria, no final do século. IV. O santo amarrava-se a cordas ásperas, chegou a acorrentar-se em seu claustro, construído sobre o monte Tesalissa. O cognome vem da palavra grega “stylos” (coluna). Simeão passou mais de 30 anos no alto de uma pilastra, de onde proferia discursos e dava conselhos.

A Opus Dei

Quando se fala em autoflagelação, logo vem à mente as imagens do filme “O Código Da Vinci”, dirigido por Ron Howard e baseado na obra de Dan Brown, quando um membro da Opus Dei se entrega à prática. Estudiosos afirmam, no entanto, que ser vigiado 24 horas por dia, ter de atar um cilício (instrumento com pontas cortantes) à coxa, ao menos duas horas por dia, e golpear as nádegas ou as costas com um chicote, são comuns entre os numerários – membros da organização religiosa que fazem voto de castidade e moram nas sedes da Opus Dei voluntariamente.

Estes grupos pretendem “santificar o mundo”. A maioria trabalha normalmente, mas os salários são entregues diretamente para a ordem. Muitos numerários são recrutados quando ainda são bem jovens. Alguns ex-membros denunciaram as torturas, mas mesmo sob a condição do anonimato.

Entre os supernumerários, membros que têm autorização para se casar e manter uma casa própria, mas eles também se entregam à autoflagelação – ou mortificação corporal – como forma de controlar os instintos que levam ao pecado.

Estes religiosos estão por toda a parte, sempre fazendo propaganda da Opus Dei. O lema da instituição é viver no mundo real, para transformá-lo de dentro para fora. Os dirigentes da ordem negam todos estes fatos, dizendo que sua função é apenas vivificar o Evangelho em todas as instituições sociais da Terra. A Opus Dei foi criada em 1928, com status de prelazia pessoal (que dá direito de seguir apenas as ordens do líder máximo, sediado em Roma, em vez de obedecer ao bispo local).

Divergências

No Protestantismo histórico, no entanto, a autoflagelação para obter o perdão não se justifica – e até mesmo é condenável –, principalmente pela interpretação de alguns trechos da Bíblia (única regra de fé aceita pelas igrejas reformadas): “Cristo morreu uma só vez pelos nossos pecados, o justo pelos injustos” (primeira carta de Paulo aos coríntios), “Cristo entregou-se a si mesmo como oferta a Deus” (carta de Paulo aos efésios). Além disto, “Cristo foi o único sacrifício agradável a Deus” (primeira carta de Pedro).

Cabe ao cristão “buscar o arrependimento sincero e a ajuda de Deus para eliminar o perdão” (primeira carta de João).

A autoflagelação é vista ainda como uma obra da carne (carta de Paulo aos colossenses) e o ato público é ainda mais execrável, por se tratar de hipocrisia, como afirmam os evangelhos segundo Mateus e Marcos. Mesmo assim, o ato continua.

Nas Filipinas, é muito comum nas cerimônias da Semana Santa (período que antecede a Páscoa). Os fieis afirmam que é preciso sentir a dor para partilhar a paixão do Cristo. Eles utilizam cordas e açoites de bambu, chicotes com lâminas afiadas nas pontas e alguns, mais radicais, carregam cruzes pesadas e chegam a se deixar crucificar, passando horas suspensos em um madeiro. A celebração é muito popular em San Matias, província de Pampanga.

Onde mais?

A autoflagelação também é observada entre os índios Bororo, que vivem no Mato Grosso. Entre eles, é um ato realizado nas cerimônias fúnebres: os familiares se castigam para demonstrar a falta que o morto fará entre os que ficaram.

Apesar de proibida no Islã, a prática é observada entre alguns grupos de muçulmanos xiitas. Teólogos islâmicos reprovam e fazem oposição vigorosa à autoflagelação, que é considerada “bidah” (inovação, inexistente nos textos sagrados). No Líbano, por exemplo, o Hezbollah (organização política e paramilitar), proíbe literalmente os castigos corporais com vistas à purificação, inclusive com milícias específicas para esta repressão.

Durante a Ashura, lembrança (pelos xiitas) do martírio de Hussein, neto de Maomé, em Karbala, Iraque, no entanto, é possível verificar a existência de autoflagelações em plena rua, formando uma visão grotesca da festividade religiosa. Alguns indivíduos de grupos muçulmanos do noroeste da África também se dispõem à autoflagelação, principalmente na Ashura, mas também no Ramadã, mês sagrado para a religião.

Até o papa?

O culto da mortificação – ou autoflagelação – não é reconhecido pelo Vaticano, mas já seduziu muitos católicos de peso, como o papa João Paulo II e (transformado recentemente em santo) os pastores de Fátima – Lúcia de Jesus dos Santos, Francisco e Jacinta Marto, três crianças portuguesas que tiveram visões de anjos e da própria Virgem Maria, em 1917.

Slawomir Oder, autor de “Por Que Ele É um Santo – O Verdadeiro João Paulo II”, afirma que o antigo papa, o mais midiático dos últimos tempos, entre as suas vestes, mantinha em seu roupeiro um cinto especial, utilizado para a autoflagelação.

A afirmação é inegável: Oder foi o promotor da canonização de João Paulo II. Além disto, esta autoflagelação já havia sido divulgada por Andrea Tornielli, biógrafo no novo santo e correspondente do diário “Il Giornale”, no Vaticano. Ele cita as declarações de uma freira polonesa, segundo quem era possível ouvir os gemidos a partir dos aposentos papais em Castel Gandolfo (residência oficial de verão), durante a flagelação. Ele teria mantido a prática enquanto teve forças para se manter em pé.

O início

No início do Cristianismo, a procura pelo sofrimento era considerada uma aberração. A tradição afirmava que era possível sofrer apenas quando isto justificasse um benefício para outra pessoa. A dor, apenas pela dor, não tinha valor algum.

Com o passar do tempo, houve alguns desvios que desembocaram no pietismo radical. O desejo de imitar Jesus e seu sacrifício pela humanidade, crença já presente no século I da Era Cristã, por um lado, e a absorção de alguns elementos da cultura grega, por outro, foram as matrizes da autoflagelação.

A autoflagelação pode ser vista como bizarra por ateus e agnósticos. Mesmo a maioria dos teólogos pós-concílio Vaticano II, veem a pratica com distanciamento. Seja como for, ela ainda é, para muitos, uma forma válida de purificação e de conexão com o divino.