A arca de Noé: verdade ou mito?

Segundo o relato bíblico (que tem início no capítulo 6º do Livro da Gênese), Deus teria se arrependido da sua Criação e decidido destrui-la; por isto, encontrou um justo – Noé – a quem ordenou a construção de uma arca (uma espécie de embarcação de fundo chato), para que ele, sua família e parte dos animais que havia na terra se salvassem de uma tempestade que deveria durar muitos dias.

Conta a Bíblia que, no tempo do patriarca Noé, os homens se multiplicaram e, de acordo com o texto, os filhos de Deus perceberam a beleza das filhas dos homens e as tomaram como esposas. Esta miscigenação teria corrompido a população (Noé era descendente direto de Adão – o primeiro homem criado no Paraíso terrestre; a ordem direta dos filhos de Deus é Set, Enos, Quenã, Malalael, Jared, Enoc, Matusalém e Lamec, que viviam entre os outros habitantes na terra).

A história

A ordem da construção de uma arca de três pavimentos foi dada a Noé diretamente por Deus, por ter encontrado nele “um virtuoso homem, inocente entre o povo de seu tempo”. As instruções constantes na Bíblia são bastante detalhadas (comprimento, altura, tipo de madeira, etc.)

Deveriam ser embarcados, depois de terminada a embarcação, os filhos do Patriarca (Sem, Cam e Jafé), além de sete casais das espécies “limpas” e dois casais das espécies “impuras” de animais que habitavam a terra.

Uma vez cumpridas estas determinações, todos entraram, portas e janelas foram seladas e, sete dias depois, “foram quebrados todos os fundamentos da grande profundidade, as janelas do céu se abriram e choveu sobre a terra durante 40 dias e 40 noites”: é o grande dilúvio.

Vale uma explicação: fundamentos da profundidade são os obstáculos que impedem as águas subterrâneas de invadirem a terra seca e as janelas do céu fazem o mesmo com as águas acima do firmamento. De acordo com as primeiras crenças hebraicas, no início, só havia um imenso abismo, coberto pela água. Certo dia, Deus decidiu separar o elemento seco destas duas faixas de água.

Continuando: depois dos 40 dias de chuva, as águas permaneceram ainda 150 dias alagando a terra, matando todos os seres não protegidos pela arca, que, em seguida, pousou sobre o monte Ararat (atual Turquia). Depois disto, Noé enviou um corvo, que ficou voando ao redor da embarcação, e uma pomba; na primeira vez, ela não encontrou terra firme para pousar: na segunda tentativa, sete dias depois, retornou ao patriarca com um ramo de oliveira.

Ao desembarcar, Noé ofereceu um sacrifício a Deus, que, por sua vez, prometeu nunca mais destruir a Terra através de um dilúvio. Para não se esquecer de sua promessa, Deus colocou o “Arco da Aliança” no céu – o arco-íris – e afirmou que todas as vezes em que o arco aparecesse entre as nuvens, ele se lembraria da sua promessa.

Mais versões do dilúvio

A saga de Gilgamesh

Gilgamesh foi um rei da Suméria (o primeiro Estado organizado na região da Mesopotâmia), cuja história está rodeada por mitos. O livro que leva seu nome conta que ele decidiu partir em uma jornada de aventuras em busca da imortalidade. Em sua saga, ele encontra o único casal imortal: Utanapistim, que revelaram ao rei a forma como venceram a morte.

Na tradição dos sumérios, os homens foram destruídos por terem irritado os deuses. Uma estas divindades, Ea, pediu por meio de sonhos a Gilgamesh que se desprendesse de seus bens materiais e mantivesse o coração puro. Em seguida, revelou a proximidade do dilúvio.

O rei construiu uma arca, reuniu sua família e, em seguida, as chuvas caíram. Os sobreviventes permaneceram embarcados durante sete dias. Finalmente, encalharam no monte Nisir (identificado com o atual Pir Nagrun, no Iraque). Aqui, a história se inverte: Gilgamesh soltou inicialmente uma pomba, que não encontrou onde pousar e retornou ao barco. Dias depois, soltou um corvo, que encontrou alimento e nunca mais foi visto.

A tradição hindu

Matsya, um avatar de Vishnu (deus que conserva o equilíbrio do mundo) transformou-se em uma carpa e foi até o rei Manu, enquanto ele estava na beira de um rio. O peixe pediu para ser salvo e o rei colocou-se sucessivamente em um jarro, poço, tanque, rio e, finalmente, no oceano, porque o animal não parava de crescer.

Nesse momento, já com o oceano muito acima do nível, Matsya, grato pela dedicação, revelou a Manu a chegada iminente do dilúvio (ou de uma grande inundação).

Imediatamente, o rei construiu um barco de grandes proporções, em que embarcou sua família, animais para repovoar a terra e sete tipos de sementes.

Matsya se apresentou com um grande chifre e Shesha, deus que sustentava os planetas no céu, como uma corda. Manu atou Shesha ao chifre de Matsya, que conduziu o barco a salvo durante todo o período em que as águas cobriram a terra firme.

Na mitologia greco-romana

A mitologia grega narra o dilúvio provocado por Poseidon (deus dos mares) a mando de Zeus (rei dos deuses), para destruir a humanidade. Era um castigo aos homens, que aceitaram o fogo roubado do monte Olimpo pelo titã Prometeu. Os titãs competiram com os deuses olímpicos pela hegemonia e foram derrotados.

Prometeu informou seu filho Deucalião a tempo, que construiu uma arca e nela abrigou sua mulher Pirra e um casal de cada espécie animal (da mesma forma que Noé). Ao cessarem as chuvas, a arca pousou sobre o monte Parnaso, perto do Oráculo de Têmis. Deucalião perguntou ao oráculo o que deveria fazer para repovoar a terra. A deusa respondeu: “voltem aos ossos de suas mães”.

Pirra, à época, era a única mulher sobrevivente na terra. O casal entendeu que o oráculo os mandara ir até as rochas (a lógica é simples: se os ossos sustentam os homens e animais, as rochas são o esqueleto da mãe Terra). As pedras tocadas por Deucalião se transformaram em homens; as de Pirra, em mulheres (ou ninfas, o que teria sido uma espécie de melhoria genética para a humanidade).

Mito ou verdade?

Como se vê, o dilúvio é encontrado em várias culturas. Além das citadas, existe também a tradição africana, mapuche (povo que habitou a América do Sul), maia, asteca, inca e uro (que habitou as margens do lago Titicaca). Ao contrário do que possa parecer, isto não prova a universalidade do dilúvio, mas o medo sempre recorrente que o homem cultivou das fortes chuvas, alagamentos e inundações.

Existe um fato, ao menos, que pode ter originado a tradição do dilúvio no Oriente Médio. Em 5600 a.C., de acordo com estudos de geólogos da Universidade Colúmbia (EUA), o nível do Mediterrâneo elevou-se bastante, a ponto de romper o estreito de Bósforo e inundar um grande vale, formando o mar Negro. A mesma elevação seria responsável pelo litoral recortado da Grécia e regiões adjacentes, com a ampliação do mar Egeu.

Existe um relato recorrente, surgido em 2009 e requentado de tempos em tempos, de que arqueólogos chineses teriam encontrado restos da arca de Noé perto do monte Ararat. O fato nunca pôde ser comprovado por outras equipes de pesquisadores, sem acesso ao sítio arqueológico.

Seja como for, crença é crença, e ninguém pode discutir as crenças alheias. Fiéis de diversas confissões religiosas podem ficar com o relato bíblico, enquanto cientistas podem negar quaisquer evidências (ou pseudoevidências) das tradições bíblicas, já que as demais caíram no rol dos mitos e lendas.