A maldade dos casacos de pele

Roupas de pele de animais têm sido feitas pelos seres humanos desde a Pré-História, mas isto era uma atitude de sobrevivência, antes de aprendermos a criar ovelhas e cabras fornecedoras de lã e a cultivar o algodão (comum na África, Ásia, América e Oceania), há 4,5 mil anos, e o linho (originário do Egito e espalhado pelo mundo há 2,5 mil anos), por exemplo, túnicas e casacos de pele caíram em desuso. Já tínhamos, há milênios, opções para os dias quentes e frios.

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A moda – e a maldade – dos casacos de pele só ressurgiu no século XIX. Usando um casaco de pele de foca verde-escuro, o escritor irlandês Oscar Wilde (autor de “O Retrato de Dorian Gray”), recém-saído de uma prisão inglesa, aportou em 1882, em Nova York (EUA), para uma série de palestras. No desembarque, ele foi fotografado muitas vezes e estampou várias capas de jornais. Infelizmente, estava lançada uma tendência.

Os casacos de pele continuaram sendo usados por artistas e escritores, mas ocorreu um “boom” nesta indústria a partir dos anos 1950, quando as estrelas de Hollywood desfilando suas peles de marta, vison, coelho, lontra, urso, arminho, raposa, lince, etc. Ava Gardner, Marilyn Monroe, Audrey Hepburn e Grace Kelly, entre outras atrizes, surgiam abraçadas, emprestando seu talento a uma atmosfera de glamour e elegância.

Mulheres do mundo inteiro imitaram as divas, vestindo casacos e estolas de pele inclusive nos países tropicais e nos verões das zonas temperadas. O importante era ficar ao menos minimamente parecidas com Elizabeth Taylor ou Sophia Loren (era uma questão de vaidade e de demonstração de status). Até mesmo algumas rainhas (como Elizabeth I, da Inglaterra) e primeiras-damas (como Jackie Kennedy Onassis, mulher de John Fitzgerald Kennedy, morto em 1963) também aderiram à moda.

Algo errado nisto?

Ninguém via nada de mais em sacrificar dezenas ou centenas de animais (no caso da chinchila, por exemplo) apenas para satisfazer futilidades. Um ponto extra da maldade dos casacos de pele: muitos animais, quando criados em cativeiro, perdem a pelagem sedosa, caso do arminho, vison e marta. A raposa-do-ártico, que deve ter se arrependido do dia em que Deus a contemplou com uma causa grossa e brilhante, tem o apêndice afinado quando é levada para fazendas.

Parte dos animais precisa ser caçada em seu hábitat natural. Além das mortes desnecessárias, isto prejudica o equilíbrio ambiental, já que estes animais contribuem para manter populações de roedores sob controle (no caso dos predadores) e por diversas atividades de polinização e repovoamento de florestas (no caso dos herbívoros).

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Muitas espécies são capturadas com armadilhas, como aquelas de mandíbulas e também as arapucas. Os animais que não conseguem se desvencilhar morrem em pouco tempo em funções de hemorragias, infecções, fome ou predação. Outros animais não visados, como cães, ovelhas, cabras, gatos, pássaros e até exemplares de espécies em extinção, também caem nas armadilhas (calcula-se que são cinco milhões por ano).

Algumas espécies que conseguem se adaptar minimamente ao cativeiro são criadas em gaiolas minúsculas (cujo piso gradeado de arame provoca deformações nas patas) e muitos animais desenvolvem hábitos de automutilação ou canibalismo; o índice de mortalidade em algumas criações atinge os 20% (um em cada cinco animais não atinge a idade ideal para abate). Além da maldade, isto também contribui para elevar os preços. Muitos criadores não respeitam a necessidade da variedade genética. Macho e fêmea consanguíneos são cruzados e sofrem mutações, deformações e alterações nas funções orgânicas.

Para produzir um único casaco de pele, a indústria precisa abater 125 arminhos, 100 chinchilas, 70 martas (apenas para a espécie zibelina; para a canadense, um pouco maior, bastam 40 raposinhas), 30 ratos-almiscarados, 30 coelhos, 25 guaxinins, 17 texugos, 15 lontras, 11 raposas, 11 linces e nove castores. Os ursos “rendem” um pouco mais.
Ninguém via nada de errado, mas também houve tempos em que a escravidão era natural, os reis tinham direito de vida e morte sobre seus súditos e as mulheres não podiam estudar, votar, trabalhar. Na década de 1930, nazismo, franquismo, salazarismo e fascismo também foram considerados naturais na civilizada Europa.

Virando o jogo

A situação começou a mudar apenas no final da década de 1960. O jornal inglês “Daily Mirror” dedicou a primeira página para artigo ilustrado sobre a matança de focas no Canadá. A foto registrou o momento em que um caçador acertava a cabeça de um filhote com um taco de beisebol. O animal tem olhos arredondados e, na imagem, parece apavorado com o golpe iminente. A manchete do jornal anunciava, em tom naturalista: “Apenas o preço de um casaco de pele”.

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as focas são mortas com estes golpes para não prejudicar a qualidade da pele. Os caçadores das regiões árticas (Canadá, Escandinávia e Sibéria) dão preferência aos filhotes, que apresentam pelo mais sedoso e macio. Os países escandinavos, no entanto, apresentam as maiores restrições ao uso de peles. Em 2011, a Oslo Fashion Week, realizada na Noruega, proibiu formalmente o uso do material nos desfiles do evento internacional.

mas há outras técnicas para não comprometer os pelos: asfixia, gazeamento por ácido cianídrico, estrangulamento (indolor, segundo os criadores), fratura da coluna cervical e eletrocução a partir da introdução de equipamentos no ânus, método que ainda tem a vantagem de fritar órgãos e músculos, facilitando a limpeza. Nem todos morrem imediatamente: parte deles é esfolada viva.

O impacto da imagem da foquinha funcionou. A foto foi reproduzida em diversas partes do mundo, outros meios de comunicação publicaram mais textos sobre o assunto e, com a divulgação da crueldade desnecessária, muitas mulheres (e alguns homens) deixaram de adquirir casacos de pele voluntariamente.

A modelo brasileira Gisele Bündchen é sinônimo de beleza e sucesso no mundo todo. Mas, em 2002, a top model errou feio: aceitou ser garota-propaganda da Blackglama, empresa americana de casacos de pele. Nas imagens, ela aparecia nua, apenas envolta em peças de mink. Dias depois, durante o desfile da grife de lingeries Victoria’s Secret, membros da PETA (People for Ethical Treatment of Animals, ou pessoas pelo tratamento ético dos animais) invadiram a passarela.

Gisele, numa famosa imagem com cinta-liga preta e salto alto, foi xingada exatamente sob os holofotes. A opinião pública condenou a campanha, Gisele retratou-se, dizendo que “se pudesse parar no tempo nunca teria aceitado o contrato”. A modelo saiu-se bem, mas foi uma bela manobra da indústria de peles para novamente emplacar peles verdadeiras no mercado.

Em 2010, Lindsay Lohan foi “contemplada” com um banho de farinha de trigo, na entrada de uma boate em Paris (França), por alguns ativistas da PETA. A cantora, atriz e modelo americana vestia um casaco de pele natural preta. Três anos depois, na New York Fashion Week (atual Mercedes-Benz Fashion Week), ela surgiu com um novo casaco, desta vez branco. Nada aconteceu.

Também há três anos, uma famosa grife brasileira, na contramão da história, lançou uma coleção com bolsas, botas, sapatos e echarpes feitos com peles de coelho e raposa, desta vez tendo uma atriz global como garota-propaganda. A própria atriz chegou a afirmar que faria uma fogueira com as peças de pele natural que possuía.

Mesmo com o avanço da conscientização, milhões de animais são abatidos para se tornar peças de vestuário. Apenas na França, 70 milhões de coelhos servem para este fim. Por isto, manifestações de ativistas dos direitos dos animais continuam acontecendo, algumas vezes com jatos de tinta, que danificam permanentemente a peça.

Moral da história

No inverno, podemos nos manter aquecidos com diversas opções. Atualmente, a indústria já desenvolveu tecidos similares às peles de animais com melhor qualidade térmica. Os tecidos sintéticos (canvas, náilon, vinil, ultrasuede) ainda trazem benefícios extras, como maior durabilidade, mais facilidade de limpeza e conservação, menor custo de produção (e consequentemente preço mais acessível) e, como bonificação, a preservação do meio ambiente.

Os couros naturais são um subproduto do abate do gado e podem ser utilizados para produzir calçados, casacos, coletes, calças e outras peças de vestuário. Estão disponíveis no mercado diversos produtos que imitam a estampa de onças, cobras, crocodilos e zebras. Não é preciso que matemos animais para andarmos na moda.